Dois públicos, duas percepções
Uma das minhas professoras de teoria literária, sempre dizia que toda grande obra de arte tem diferentes níveis de leitura. Formula 1, obviamente, não é arte, mas assim como a boa arte, sua complexidade acaba dividindo o seu público em vários grupos distintos, que têm diferentes percepções do jogo.
Eu e você, com perdão da pouca modéstia, podemos ser enquadrados entre a elite, aqueles que absorvem o esporte com prazer e conhecimento análogo àqueles que degustam um belo Chianti.
Esses finos apreciadores podem ser chamados de entusiastas. Eles são capazes de destrinchar detalhes técnicos e históricos do esporte; interessar-se pela sua faceta política ou midiática — ou, simplesmente, se divertir com elaborados e aparentemente inúteis detalhes estatísticos. São essas pessoas que entendem as sutilezas da F1, que são capazes de entender e respeitar o valor de cada piloto ou equipe, que vagam pela internet à busca de informação detalhada e acurada sobre o esporte.
Como conseqüência de tão profundo interesse, são eles que criam e elaboram conteúdo paralelo ao fornecido pelos veículos de comunicação já consagrados, escrevendo sobre o esporte em blogs e que encontram-se em fóruns para discutir esses intrincados detalhes.
O outro grupo, maior e mais homogêneo, é aquele capturado pela voracidade da televisão ao redor do mundo. São, mais distintamente, “telespectadores”. Eles jamais construirão a sua rotina de final de semana em torno do grande evento da F1, a corrida. Jamais se disporão a consumir altas cargas de crua informação para discutir o esporte à exaustão após cada corrida. O grande apelo que mantém esse público atado ao esporte é, na maioria das vezes, o apoio a qualquer piloto (às vezes equipe) que com ele divida a mesma nacionalidade.
Para a FOM, companhia detentora dos direitos da F1, o público mais importante, não há muita dúvida, é esse, maior e mais homogêneo, mas menos crítico e hábil para perceber as sutilezas e detalhes do esporte.
A influência da TV e do público sobre a F1
A influência da TV e do público sobre a F1
No decorrer dos anos, a F1 tornou-se cada vez mais dependente do dinheiro proveniente dos direitos de exibição da TV. Não é raro que a procura da FOM por audiência comprometa a identidade da categoria e a deforme como esporte, tornando-a mais confusa. Não é coincidência, então, que há décadas atrás, quando a influência desse público e da televisão eram menores, o esporte tinha regras técnicas mais consolidadas e estáveis.
A adoção do safety-car e do reabastecimento no início da década de 90, as sucessivas formatações da classificação, ou mesmo a recente e malograda sugestão na mudança do sistema de pontuação, são exemplos do esporte sofrendo mutações no decorrer dos anos em nome do espetáculo e da necessidade do telespectador por entretenimento.
Para esse público, o que importa é apenas a ação na pista, comprimida naquela quantidade de tempo, inserido dentro de uma grade de televisão imutável.
É para esse público que a FOM tenta formatar o esporte, usando como ferramenta a FIA, entidade que o gerencia, para injetar via regulamento doses maciças de entretenimento em suas veias.
Portanto, há um claro embate entre a integridade histórica da F1 como esporte, valorizada pelos fãs “hard-cores”, e sua viabilidade econômica, provida pelo público médio da televisão, fornecedor dos gordos pontos de audiência ao redor do mundo.
Nem sempre o desejo desses dois públicos é conflitante. De fato, na maioria das vezes, suas aspirações quanto à direção do esporte são convergentes. Às vezes, FIA e FOM tendem a subestimar a mentalidade do telespectador médio e a insultar a inteligência do entusiasta aculturado do esporte, tomando decisões unilaterais sem sustentação de dados reais provenientes de pesquisas.
A missão de FIA e FOM, então, é encontrar o equilíbrio que torne a F1 novamente um esporte íntegro, com regras claras e simples. Que mantenha, ao mesmo tempo, vivo o DNA histórico do esporte e lhe ofereça rentabilidade econômica na mesma proporção.
Será que Max Mosley e Bernie Ecclestone estão preparados para tal missão?
A FOTA pode ser a resposta
A FOTA, entidade representativa das equipes, parece ter a chave para manter tal equilíbrio. No início desse ano, a entidade liderada por Luca di Montezemolo fez razoáveis sugestões para uma reformulação da categoria que mantivesse sua identidade e também viabilidade econômica. O mais importante é que a FOTA baseou suas sugestões para a FIA em uma ampla pesquisa global de mercado feita em 17 países, indagando e sugerindo soluções ao próprio fã da categoria.
A Formula 1 é o esporte mais complexo que existe, que converge ao mesmo tempo a mais alta tecnologia e o elemento humano em um mesmo universo competitivo. Para mantê-lo vivo e saudável é preciso ter essa mesma perspectiva: tecnológica, humana e histórica.
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